A intervenção arqueológica de diagnóstico foi levada a cabo no imóvel sito na Rua dos Bacalhoeiros, nº 16C e 16D e Arco das Portas o Mar, nº 1-5, em Lisboa.
Trata-se de um edifício abrangido por áreas de nível I e II de sensibilidade arqueológica, estabelecidas no PDM de Lisboa, localizando-se na Zona Geral de Protecção do Castelo de São Jorge e Restos das Cercas de Lisboa, classificado como Monumento Nacional pelo Decreto de 16-06-1910, DG, n.º 136, de 23-06-1910; Zona Geral de Protecção da Lisboa Pombalina, classificada como Conjunto de Interesse Público pela Portaria n.º 740-DV/2012, DR, 2.ª série, n.º 248 (suplemento), de 24-12-2012 / Decreto n.º 95/78, DR, I Série, n.º 210, de 12-09-1978; e ainda na Zona Especial de Protecção da Sé / Igreja de Santo António / Igreja da Madalena / Lápides das Pedras Negras / Igreja da Conceição Velha / Casa dos Bicos, estabelecida na portaria publicada no DG, II Série, n.º 213, de 11-09-1961.
Os trabalhos decorreram de forma descontinuada entre 24 de Junho de 2016 a 18 de Maio de 2017, num total de cinco fases distintas. Na primeira fase foram realizadas as três sondagens de diagnóstico propostas para os números de porta 16C e 16D. Numa segunda fase foi efectuado um alargamento da sondagem II para Este, até à parede existente, e à realização de uma sondagem parietal. Embora estivessem previstas duas sondagens parietais, a remoção da parede falsa em contraplacado, no seguimento da sondagem de solo III, permitiu descartar desde logo uma delas. Numa terceira fase procedeu-se à realização de dois alargamentos que unissem, por um lado, a sondagem II à sondagem I e, por outro, a sondagem II à sondagem III. Na quarta fase dos trabalhos, após reunião levada a cabo a 3 de Novembro de 2016, na sede da DGPC, entre a técnica Maria José Sequeira, o promotor da obra, a equipa projectista e as arqueólogas responsáveis, procedeu-se à escavação de toda a área a Norte da muralha tardo-romana previamente identificada. Numa última fase realizou-se a sondagem no espaço pertencente ao edifício, mas no lado Este do Arco das Portas do Mar, área onde o projecto de águas e esgotos previa a implantação de duas caixas de ligação à rede pública, em alternativa à proposta inicial que colidia com os vestígios romanos entretanto identificados.
Ficou por diagnosticar parte do piso térreo, correspondente aos números de polícia 16A e 16B, uma vez que este se encontra ocupado por um estabelecimento comercial ainda em funcionamento.
Apesar de os trabalhos de diagnóstico previstos no Plano de Trabalhos não terem sido concluídos uma vez que parte do edifício se encontra ainda ocupado por um estabelecimento comercial em funcionamento, podemos já avançar algumas conclusões no que diz respeito à ocupação da frente ribeirinha e, especialmente, à área onde se localiza o edifício.
Como seria espectável, foi possível registar vestígios de ocupação que vão, grosso modo, de época romana até à actualidade. A existência não só da estrutura amuralhada romana tardia, mas sobretudo de outras menos imponentes, nomeadamente pisos e outras estruturas de carácter doméstico, de cronologias distintas, permite estabelecer uma continuidade na ocupação desta área ao longo do tempo.
A Norte da estrutura [216], muralha tardo-romana, os contextos são fundamentalmente, mas não exclusivamente, romanos, destacando-se de entre estes parte do que parece corresponder a um peristilo e um piso em lateres e tegullae. Os três muros que delimitam o tanque revestido a opus signinum, o qual tem continuidade para Oeste do edifício sob a parede actual, apresentam uma construção imponente, com uma base constituída por silhares rectangulares de grande dimensão sobre os quais se dispõem lateres unidos com argamassa de tonalidade esbranquiçada. Uma argamassa idêntica é utilizada no reboco das faces exteriores das estruturas. Nos cantos NE e SE, assentes nos silhares, encontram‑se duas bases de coluna em pedra de lioz, possivelmente da ordem coríntia. Os dados recolhidos, nomeadamente no que diz respeito à substituição do urgeiro revestido a estuque por pedra de lioz, o que traduz uma mudança de solução decorativa entre a primeira fase de urbanização das cidades e aquela que se aplicará a partir da época Júlia-Cláudia (FERNANDES, 2002, p.254), permitem avançar uma cronologia idêntica para a construção da domus cujo possível peristilo identificámos.
No lado Norte deste conjunto foi possível observar algumas alterações posteriores, se bem que ainda em período romano, nomeadamente um piso constituído por um depósito argilo‑siltoso compacto que encostou ao reboco exterior do muro que limita o tanque a Norte. Ora, não parece fazer sentido construir uma estrutura com silharia imponente e bem aparelhada, rebocá‑la e, de seguida, tapá‑la quase na totalidade com um piso de menor qualidade. A hipótese de estarmos perante uma estrutura que tenha perdurado no tempo, com algumas alterações, parece‑nos mais coerente. Infelizmente, não nos foi possível estabelecer uma relação estratigráfica deste conjunto com a muralha tardia ou datar os contextos sobre os quais foi construído. A proximidade deste tanque ao troço de muralha, no entanto, sugere uma alteração ou desactivação de um edifício pré‑existente, à semelhança do que foi possível observar aquando dos trabalhos nos antigos Armazéns Sommer. Aí, um dos exemplos do “processo do recuo urbano preconizado pelo amuralhamento tardio, comum a muitas cidades da Hispânia nos séculos IV/V, é o testemunho de um muro que corre com orientação E‑O apresentando estuques pintados em ambas as faces que foi completamente envolvido no miolo da muralha” (RIBEIRO & alii, no prelo).
Outras estruturas puderam ainda ser identificadas a Norte da muralha, designadamente muros e um poço, contudo, a atribuição de cronologias não é fácil. É plausível supor que o poço tenha funcionado na primeira metade do século XVII como lixeira, no entanto, e uma vez que não se escavou na totalidade os enchimentos da vala para a sua construção, não existe material arqueológico associado a este momento. A análise do conjunto artefactual recolhido no interior, pouco fragmentado e predominantemente constituído por loiça de mesa (jarros, canjirões e taças) e de cozinha (panelas e frigideiras de grande dimensão), permite avançar a hipóteses de estarmos perante um despejo único resultante da desactivação/abandono de um estabelecimento comercial no qual eram servidas refeições, provavelmente uma taberna, estabelecimento comum na “Ribeira Velha” desde o século XVI (Oliveira, 1620, pp. 61-62).
Por outro lado, foi possível identificar a reconstrução do muro [235] numa fase posterior e à qual se atribuiu a U.E. [141], reconstrução essa cortada pela vala do poço [111], mas mais uma vez não existe material associado. Sabemos apenas que esse é posterior ao muro [235] e anterior ao poço.
Sobre e a Sul da estrutura [216], os níveis mais antigos identificados no âmbito das sondagens apresentam cronologia de época Moderna. De entre estes destaca-se o piso em tijoleiras anterior ao Terramoto de 1755, bastante fragmentado e com claros vestígios de incêndio.
A estrutura [216], que ocupa uma grande parte da área intervencionada, parece corresponder à muralha romana tardia da cidade, se tivermos em conta os contextos romanos que se lhe associam a Norte, assim como as características e dimensões do troço de muralha romana identificado para Este do edifício em análise, nomeadamente durante as intervenções arqueológicas levadas a cabo na Casa dos Bicos, nos antigos Armazéns Sommer e no antigo Palácio de Francisco de Távora. Efectivamente, o troço de muralha romana identificado nos Armazéns Sommer apresentava uma largura máxima de cerca de 6,5m, com um escalonamento em degraus no seu lado Norte. Este escalonamento não se conseguiu confirmar no espaço em apreço uma vez que as cotas de escavação foram muito reduzidas, no entanto, a presença de estruturas cronologicamente mais antigas (caso do possível peristilo e do muro [235]) a uma cota tão elevada e tão próximas do paramento Norte da muralha permitem supor que este escalonamento não exista na área do edifício em questão.
A estrutura [312] consiste igualmente numa estrutura robusta, com alinhamento Este-Oeste, apresentando uma face rebocada virada a Sul pelo que seria certamente uma parede exterior, inserindo-se no alinhamento proposto por Vieira da Silva para a Cerca Moura nesta zona da cidade de Lisboa. Encontra-se ainda paralela à estrutura [216], parecendo adossar-lhe. Mais uma vez, o facto de não se terem escavado os contextos até à base da estrutura não permite averiguar a cronologia da mesma. Não obstante, adossam-lhe depósitos de cronologia Moderna pré-terramoto.
Relativamente à sondagem IV, levada a cabo numa parte do edifício a Este do Arco das Portas do Mar, considera-se que o diagnóstico nesta área foi pouco conclusivo, embora se tenham identificado estruturas anteriores ao século XVI. Efectivamente, verifica-se a presença de uma estrutura bastante robusta, [414], com cerca de 1,7m de largura máxima reconhecida, à qual encostam depósitos com materiais arqueológicos enquadráveis no século XVI, bem como uma calçada, [421], cuja cronologia não foi possível aferir e uma estrutura murária, [422], que se associa àquela. Acima dessa calçada havia sido identificada uma outra, [418], o que demonstra claramente uma ocupação continuada do espaço, sempre posterior à estrutura [414].
Os trabalhos nesta sondagem deram-se por terminados no nível em que se detectaram as estruturas [421] e [422], não se tendo prosseguido o diagnóstico em profundidade no espaço sondado.
Artigos relacionados:
- Contextos romanos identificados na frente ribeirinha de Lisboa (II Congresso da Associação dos Arqueólogos Portugueses).