No âmbito do Projecto Parque Escolar, decorreu entre Novembro de 2009 e Abril de 2011 a intervenção arqueológica de emergência na Escola Secundária Diogo de Gouveia, em Beja, após terem sido identificadas algumas estruturas negativas no decurso do acompanhamento arqueológico das obras de remodelação daquela escola. A intervenção dividiu-se em seis fases, durante as quais foram identificadas numerosas sepulturas de cronologia medieval islâmica e cristã, bem como estruturas negativas (silos) e positivas.
Os dados da intervenção levada a cabo irão possibilitar um melhor conhecimento da cidade de Beja em época islâmica e estabelecer de forma mais precisa os limites da necrópole existente naquele local, bem como a dimensão e características da população que servia, revelando novos factos quanto à necrópole islâmica e sua posterior utilização como cemitério cristão, assim como acerca da utilização do mesmo espaço para armazenamento de cereais demonstrada pela existência de silos.
Os trabalhos de arqueologia desenvolveram-se de forma faseada consoante as necessidades de obra: a construção de novos edifícios (fase 1 e 2) e o rebaixamento de pisos (fases 3 a 6) que incluiu também a abertura de valas para colocação de infra-estruturas. Deste modo, totalizou-se aproximadamente 2200m2 de superfície escavada, a qual se caracteriza pela presença de inumações islâmicas em todas as áreas; inumações cristãs nas áreas 1, 2, 3 e 5; silos nas áreas 1, 2, 3, 4 e 5; estruturas positivas (muros) nas áreas 2, 5 e 6; e estruturas negativas nas áreas 4 e 5 (buracos de poste).
A existência naquele local da necrópole islâmica era já expectável, de acordo com os trabalhos desenvolvidos pela Palimpsesto na Rua de Mértola. Assim sendo, o resultado desta intervenção contribui para um melhor conhecimento da dispersão da necrópole islâmica de Beja, muito embora não seja ainda possível identificar os seus limites, devido à natureza da própria intervenção: uma escavação de emergência em contexto de obra. Podemos, porém, através das realidades identificadas em campo, afirmar a ocupação do sítio em época islâmica e, posteriormente, durante o período da reconquista. Em termos funcionais registam-se também claramente duas realidades: a Oeste, a utilização do espaço maioritariamente como necrópole quer no período islâmico quer posteriormente; a Este, uma ocupação do espaço essencialmente ligada a actividades económicas, patente nos múltiplos silos detectados.
Fase 1
No designado Pátio Interno foi escavada uma área de cerca de 124m2, onde se identificaram três níveis de ocupação, nomeadamente a necrópole islâmica (49 enterramentos), os silos de época Medieval/Moderna (14 estruturas) e ainda um enterramento cristão, em covacho simples escavado no sedimento, com orientação O-E e em decúbito dorsal, que se encontrava cortando uma talha fragmentada in situ.
Das sepulturas escavadas nos gabros, distinguem-se dois tipos: (1) simplesmente escavado na rocha e com orientação SO-NE (este prevalece em número); (2) ou estruturado com lajes em cerâmica de média dimensão à cabeceira e telhas ao longo da sepultura dispostas em sentido oblíquo. Ainda se registaram sepulturas só revestidas com telhas e sem lajes e outras duas só com lajes de cobertura. Estas duas últimas também têm orientação SO-NE e as sepulturas estruturadas são praticamente orientadas no sentido S-N. Os enterramentos são sempre efectuados em decúbito lateral direito sem qualquer tipo de espólio.
A construção dos silos, de grande dimensão, chegando a atingir os 2,5m de diâmetro e profundidade semelhante, apresentando dois deles a boca estruturada com lajes de cerâmica na horizontal ou com pedra e cerâmica de construção, afectou em grande medida os enterramentos, os quais se encontram também seccionados por níveis de necrópole posteriores. Dos catorze silos registados, onze foram escavados na íntegra, dois apenas registados em plano por se encontrarem fora da área de afectação e um escavado apenas parcialmente devido a questões de segurança. São essencialmente ovalados e alinhados no espaço entre si.
A maior particularidade desta área poderá ser a sobreposição das duas realidades: no mesmo espaço “convivem” três contextos diversos cronológica e funcionalmente.
Fase 2
O Pátio Oeste corresponde a uma área escavada de cerca de 330m2, onde se voltaram a registar duas realidades em termos funcionais: a ocupação de cariz económico, através da existência de 4 silos com cerca de 1,5m de altura e de forma ovalada, os quais cortavam as inumações islâmicas que constituem o nível de necrópole. Verificou-se também uma ocupação posterior com a mesma função de necrópole, desta feita cristã, cortando quase de forma perpendicular os enterramentos islâmicos.
Quanto à tipologia das 52 sepulturas islâmicas (3 delas de crianças), mantêm-se as sepulturas simples escavadas na rocha ou estruturadas por telhas, mas sem registo de lajes de cobertura. Encontram-se orientadas SO-NE ou ligeiramente S-N, com os enterramentos em decúbito lateral direito e crânio virado a Este. Não apresentam qualquer tipo de espólio associado.
As 17 sepulturas cristãs (6 delas de crianças) caracterizam-se por dois tipos: simples covachos em sedimento ou antropomórficas (6 identificadas), escavadas na rocha com orientação O-E e enterramentos em decúbito dorsal. Também não se registou qualquer tipo de espólio associado.
Foram ainda escavadas duas estruturas positivas alinhadas, compostas por pedra seca com raros vestígios de argamassa, que se encontravam estratigraficamente sobre as inumações islâmicas. A ausência de espólio ou de níveis estratigráficos fiáveis não permite avançar outras considerações para além da sua relação de posterioridade com a necrópole islâmica.
É de salientar que nesta área foi também identificada uma estrutura negativa de cerca de 2m x 0,80m na qual se encontravam ossos humanos dispersos (que poderiam pertencer a um mesmo indivíduo), juntamente com uma lucerna de cronologia romana intacta. Paralelamente a esta estrutura, foi escavada uma sepultura coberta por lajes abatidas que sugeriam uma disposição oblíqua, na qual a inumação se encontrava em decúbito dorsal, porém com orientação E-O, à qual se sobrepunha uma sepultura islâmica. Não tendo espólio associado não se avançam certezas quanto à sua cronologia, ficando a hipótese destas duas realidades pertencerem a uma ocupação anterior à islâmica, ou seja, da época romana.
Fase 3
A fase 3 é caracterizada pela abundância de silos em oposição aos escassos enterramentos registados, sendo também o local onde aquelas estruturas negativas apresentam maior concentração. Assim sendo, na área da Cantina, em cerca de 100m2 escavaram-se quinze silos e quatro inumações: duas islâmicas e duas cristãs. Apenas uma das inumações cristãs se encontrava completa e bem conservada, apresentando quatro anéis, dois em cada mão, em decúbito dorsal com orientação O-E. A segunda inumação cristã respeitava a mesma deposição e orientação e as duas sepulturas islâmicas encontravam-se com orientação SO-NE, em decúbito lateral direito, afectadas pela construção dos silos.
Os silos foram escavados na íntegra e forneceram material arqueológico em grande quantidade, na sua maioria cerâmico, o qual, à semelhança das áreas anteriores, permitiu a identificação do seu aterro com a época moderna. Não variando muito quanto à forma, sendo essencialmente ovalados, verificou-se a selagem lateral de alguns com pedra seca.
Fase 4
Nesta área de cerca de 80m2 escavaram-se duas inumações islâmicas danificadas por obras anteriores, as quais seguem a mesma orientação SO-NE e a mesma deposição em decúbito lateral direito das restantes. Surgiu ainda um silo de forma ovalada, com cerca de 1m de altura conservada, o qual continha algumas peças de cerâmica comum em bom estado de conservação.
Relativamente às áreas anteriores, este espaço apresenta a característica particular da existência de mais de noventa pequenas estruturas negativas, quadrangulares ou circulares, com diâmetros entre os 10 e os 20 cm e pouca profundidade, revelando algum alinhamento entre elas, mas não de forma clara.
Fase 5
A fase 5 correspondeu à intervenção na área tida como entrada principal da escola, zona Oeste do estacionamento, em cerca de 900m2. Exumaram-se aí setenta e três enterramentos, dos quais apenas um era cristão. Duas destas inumações apenas foram registadas em plano por se encontrarem fora da área de afectação, mas a sua orientação aponta para uma cronologia islâmica. Esta área destacou-se porém pela presença de algumas sepulturas com orientação O-E, que não revelaram enterramentos cristãos como esperado, mas sim islâmicos, segundo a deposição em decúbito lateral direito e, neste caso, com o crânio virado a Sul. O mesmo sucedeu com a única inumação cristã exumada, que se encontrava numa sepultura com orientação sensivelmente S-N, mas em decúbito dorsal. A tipologia das sepulturas islâmicas repete-se relativamente às áreas já descritas. A sepultura da inumação cristã era em covacho simples, escavada na rocha.
Nesta área registou-se ainda uma grande quantidade de estruturas positivas (7 muros) embora, tal como nas áreas restantes, a sua posição estratigráfica apenas nos permita afirmar serem posteriores aos enterramentos islâmicos. Apresentam aparelho em pedra seca e reaproveitamento de cerâmica de construção, não excedendo em largura os 0,60m. O seu comprimento varia entre os 2 e os 4m, conforme o estado de conservação, estreitamente ligado à construção da escola. As orientações são também diversas: NO-SE, S-N ou E-O. Em nenhuma situação foi possível estabelecer uma relação física ou cronológica com os enterramentos cristãos ou com os silos.
Foi identificado e escavado unicamente um silo nesta área, com cerca de 1m de altura e forma ovalada.
Na zona de maior concentração das sepulturas também se identificaram nove pequenas estruturas negativas dispersas, semelhantes àquelas identificadas na área da Rampa de Acesso, com cerca de 10 cm de diâmetro e não mais de 8 cm de altura.
É ainda de salientar o registo de uma inumação islâmica com presença de espólio, facto pouco habitual, especialmente atendendo ao tipo de espólio em causa: um par de esporas in situ, ou seja, situadas junto dos calcanhares do indivíduo. Foi igualmente levantado um ossário e uma redução associados a inumações islâmicas, ocorrência igualmente pouco comum.
Fase 6
Na zona do Campo de Jogos foi intervencionada uma área de cerca de 650m2, que revelou uma característica particular: o facto de ser a primeira área em que se encontram enterramentos islâmicos em sepulturas escavadas não só na rocha como em sedimento. Todas elas seguem a tipologia das áreas anteriores variando na estruturação vertical/oblíqua com telha ou lajes cerâmicas como tampa. A orientação varia igualmente entre SO-NE e S-N. Como a maioria das restantes, as 76 sepulturas islâmicas identificadas nesta área não apresentam espólio, mas revelam uma utilização massiva e muito intensiva do espaço, uma vez que as sobreposições de enterramentos são abundantes. Não existe registo de inumações cristãs nesta zona.
Foram igualmente escavadas quatro estruturas positivas (muros) em tudo idênticas às anteriores, porém com uma camada de argamassa unindo-as no topo. Estas estruturas foram identificadas após remoção da camada de aterro recente que cobria toda a área, assim como os níveis arqueológicos das áreas anteriores, e encontram-se imediatamente acima do nível da necrópole islâmica. Não foi identificada qualquer relação física no espaço entre as estruturas, podendo apenas avançar-se uma relação cronológica e tipológica através das suas características de construção.
Identificou-se ainda a presença de dois silos nesta área, os quais foram apenas registados em plano uma vez que se encontravam abaixo da cota de afectação prevista pela obra.
Responsáveis pelo Projecto: Raquel Santos e Mónica Gomes
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Vídeo:
- (Bom dia Portugal, RTP, Abril 2011)