Ao longo dos trabalhos arqueológicos foram intervencionadas as áreas a ser afectadas pelo projecto de reabilitação do edifício, nomeadamente com o desentulhamento de um compartimento interior, desactivado após o terramoto de 1755, assim como o rebaixamento parcial da área do logradouro.
O edifício encontra-se numa zona de nível II de sensibilidade arqueológica, estabelecida no PDM de Lisboa, encontrando-se em área intramuros do Castelo de São Jorge e na Zona Geral de Protecção do Castelo de São Jorge e Restos das Cercas de Lisboa, classificados como Monumento Nacional pelo Decreto de 16-06-1910, DG, n.º 136, de 23-06-1910. Localiza-se portanto numa zona extremamente sensível em termos patrimoniais e arqueológicos, apresentando ao nível do piso térreo uma área soterrada que se pensa que poderá ter sido parte integrante da área útil, posteriormente aterrada. A corroborar essa hipótese, apresenta vestígios de elementos arquitectónicos (arcos, porta…) entaipados na parede que encerra a referida área, para Este.
A intenção do proprietário em reabilitar o imóvel, motivou esta intervenção arqueológica a fim de esclarecer a possibilidade de vir a ocupar aquela área inacessível: uma sondagem inicial ao nível do piso1, sobre esta área aterrada, com a possibilidade de alargamento imediato; e outra sondagem no espaço de jardim, onde eventualmente se irá considerar a hipótese de criar um saguão para iluminar o espaço térreo.
Os trabalhos arqueológicos revelaram, acima de tudo, a presença de uma necrópole que se estende desde o espaço interior do imóvel até ao logradouro a Oeste, com uma utilização em termos de tempo bastante curta – no máximo 18 anos, entre o terramoto de 1755 e a reconstrução do edifício em 1773. Esta utilização poderá até ser bastante inferior, devido ao estado dos enterramentos e à análise estratigráfica da sucessão dos mesmos.
Como aconteceu com bastante frequência nesta zona do Castelo de São Jorge, muitos compartimentos foram entulhados e desactivados, como resultado dos derrubes e destruição causada pelo terramoto.
Os dados que foram possíveis de obter nesta escavação são bastante incompletos, devido aos trabalhos terem sido interrompidos por motivos comerciais, como já foi mencionado, o que limita a leitura do espaço e da estratigrafia.
Apesar dessas limitações, os trabalhos efectuados permitem demarcar uma sequência cronológica, nomeadamente através da análise da estratigrafia horizontal e parietal, que possibilita diferenciar várias fases de ocupação do espaço, como se apresenta de seguida.
Fase I
A sala do piso zero terá sido muito afectada com o terramoto e abandonada desde logo, com a sua utilização como área de despejo de entulhos, seja domésticos, seja de construção, com um primeiro nível de descarte de cerâmica, com carvões e cinzas, e algum, mas pouco material de construção, sobreposto por um nível com maior concentração de telhas, e por fim por despejos de derrubes de paredes, efectuados no sentido Oeste-Este, ficando com bastante inclinação. Estes níveis de aterro foram efectuados com a porta manuelina ainda em funcionamento. Esta fase terá ocorrido logo após o terramoto, provavelmente no período de remoção de escombros e limpeza dos espaços.
Fase II
A porta manuelina foi entaipada só nesta fase, pois verificou-se um interface de corte nos níveis de aterro já existentes na sala para esse processo de fecho da porta. Aparentemente, houve um alteamento das paredes, mais notório na parede Norte. Foram despejados novos níveis de aterro, para regularizar o espaço, devido ao nível de pendente dos aterros anteriores, provavelmente já com o intuito de se usar o espaço como necrópole.
Fase III
Utilização do espaço como necrópole, que terá ocorrido num tempo máximo entre 1755 e 1773, embora possa ter sido num espaço de tempo menor. A proximidade temporal entre enterramentos, que significou o corte de enterramentos anteriores, ainda com tecidos moles, para o máximo aproveitamento de espaço indica esse curto espaço de tempo.
A interpretação possível, dada pelo processo de escavação, permitiu aferir que se trata na sua maioria de indivíduos do sexo masculino (cerca de 66% entre confirmados e com maior probabilidade de serem do sexo masculino) e, em grande parte, imaturos e maturos muito jovens. A presença de espólio associado a muitos dos enterramentos, com um cariz religioso – terços, rosários, crucifixos, medalhas – demonstra uma homogeneidade na origem dos indivíduos. Apesar de se tratar de um espaço de tempo muito curto para todos os enterramentos, não se trata de uma vala comum, ou, o que seria de esperar num caso destes, de resultado directo do terramoto de 1755. A necrópole foi formada ao longo de um determinado período de tempo e não num ou dois momentos imediatamente a seguir ao terramoto. Por outro lado, trata-se de sepulturas individuais, posicionadas com orientação análoga Este-Oeste, Oeste-Este, e Norte-Sul, Sul-Norte junto à parede Este.
Há uma ausência de maior amplitude de idades e género, o que indica uma origem comum a pelo menos uma grande maioria dos indivíduos.
O edifício pertenceria ao Recolhimento Do Castelo, mas este é um recolhimento feminino. Nas proximidades existiu o Hospital dos Soldados de São João de Deus. É uma hipótese de proveniência destes indivíduos, mas em teoria deveria haver uma maior amplitude de idades, sendo também pouco provável que estes indivíduos fossem enterrados com espólio deste tipo, nomeadamente com terços e rosários ao pescoço.
Estes dados parecem aproximar mais de um espaço religioso como seria o Recolhimento, mas a quase ausência de enterramentos femininos confirmados (apenas 3), parece indicar que haveria uma área reservada a rapazes, no Século XVIII.
Há um desconhecimento do que se terá passado com aqueles espaços no período a seguir ao terramoto, com a excepção do abandono pelas ordens religiosas e pela coroa, na sua utilização como recolhimento feminino. Levantamos aqui a ideia de que terá havido uma mudança de funcionalidade adaptada à nova realidade pós-terramoto, com a sua utilização como orfanato, que recolhia crianças de ambos os sexos, e com origem mais díspar, ao contrário do recolhimento feminino dirigido à recolha e educação de meninas órfãs de origem nobre. Após o terramoto de 1755 muitas crianças ficaram órfãs e foram recolhidos por instituições por toda a cidade. Havendo uma necessidade de espaço para tal, o destruído Recolhimento poderá ter sido então adaptado. Os rapazes seriam ali criados até à idade de, por exemplo, se juntarem ao exército, como em outras instituições.
Mas o porquê de tantos enterramentos em tão pouco espaço de tempo só parece ter explicação nas epidemias que surgiram inevitavelmente após o terramoto, e ao longo de algum (certamente não muito) tempo. Os rapazes (e raparigas) que ali se encontravam recolhidos, e alguns adultos, terão padecido dessas epidemias, manifestando-se a necessidade de espaço para os enterramentos, e sendo assim aproveitada esta área que estaria ao abandono, usada para despejo de aterros e derrubes das estruturas, confirmada pelos níveis [199,1011,1012,1014,1015], e readaptada a espaço de necrópole, com regularização da área e encerramento de vãos.
Fase IV
Corresponde à reconstrução do edifício em 1773, que anulou completamente o compartimento e a necrópole, com a construção de alicerces que afectaram os enterramentos, e a divisão do espaço em dois, com o espaço actual exterior de logradouro e o interior, cortado pela fachada Oeste do edifício. Dividiu-se ainda o espaço actualmente interior em dois compartimentos, com uma parede Este-Oeste que se detectou na sondagem 1, um corredor e outra sala, por cima da abóbada do piso zero. A parte Norte da Sondagem 1 parece ter sido mantida com ligação ao espaço da Sondagem 2, e apenas separado posteriormente a esta reconstrução de 1773. Este facto é evidenciado pela porta Norte, na fachada entre as áreas 1 e 2, que assenta sobre os depósitos de enterramento e não os corta como acontece com o alicerce que faz um formato de “L”. Possivelmente até existiria ali um espaço aberto que terá sido fechado apenas mais tarde.
Fase V
Durante os séculos XX e XXI houve renovações e a construção de infra-estruturas que afectaram a necrópole, tanto no interior do edifício, como no exterior, mais evidente no espaço do logradouro.
Os trabalhos arqueológicos não foram concluídos, não tendo sido possível exumar todos os enterramentos identificados, assim como atingidas as cotas de obra, que irão incluir ainda bastantes enterramentos, tanto na Área 1 (interior) como na Área 2 (logradouro).
Recomenda-se a conclusão do diagnóstico iniciado, que terá de passar pela escavação manual de toda a área a ser intervencionada, com a presença permanente de antropólogos, necessários para a identificação, escavação e recolha dos inúmeros enterramentos.
Com base na única área que foi passível de ser escavada na totalidade (a zona Norte da Sondagem 1), uma área de 3m x 2m x 1m de profundidade, onde foram identificados e recolhidos 42 enterramentos (totais e parciais), estima-se uma previsão total de enterramentos para o total da área a ser intervencionada de cerca de 350 indivíduos, totais e parciais, já que foi confirmada a extensão de necrópole até ao limite Oeste da Sondagem 3 no logradouro.
O diagnóstico a concluir deverá ainda passar pela confirmação da cronologia e funcionalidade da abóboda existente ao nível do piso 0, que numa análise preliminar nos parece tratar-se de uma construção pré-terramoto, como mencionado anteriormente.